quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Uma gota de sangue: A questão racial no Brasil e no mundo


Caros acompanhantes deste espaço,

ps: todos as palavras grifadas em azul redirecionam para links de interesse.

hoje estou a escrever inspirado pelo grande geógrafo, professor e ilustríssimo autor do livro "Uma gota de Sangue: História do pensamento racial" Demetrio Magnoli, cuja entrevista no Programa do Jô acabara de assistir nesta madrugada de terça para quarta.

Um dos pilares de sua obra tem por base a teoria do racismo científico, desenvolvido em meados do século XIX por pensadores europeus num contexto geopolítico onde as grandes potências do mundo ampliavam as suas esferas de poder com a colonização de vastos espaços na África e na Ásia, como forma de subjulgamento dos povos colonizados, tidos como inaptos ou incapazes de compreender o modo civilizatório do colonizador, o que justificou a invasão, o genocídio e assassinato de populações inteiras nesses lugares até então.

Como tudo isso começou?

Lembremos que para que hoje tenhamos computadores, celulares, carros e gadgets afins foi necessário um 'start', ou seja, o que a história chama de revolução industrial originada também no continente europeu no final do séc XVIII. Até então o que se entendia por civilização era a ocupação do espaço de produção voltada à agricultura e pecuária destinada a uma determinada comunidade local ou uma sesmaria (que era o espaço geográfico sob jurisdição paroquial, administrado pela Igreja). A distribuíção de alimentos e suprimentos eram localizadas e as trocas com o mundo exterior se limitavam apenas a suprir os produtos que não podiam ser produzidos ali por conta de sua condição natural, simples assim. Entretanto, em dado momento histórico, para que as elites urbanas burguesas de cada localidade justificassem o seu status social, geraram uma demanda potencial de consumo, e essas trocas que até então eram meramente mercantis, ou seja, de produção artesanal ou em pequena escala, portanto não produzidos em quantidade suficiente para satisfazer essa mesma demanda. Passaram então a patrocinar unidades de produção fabris em seus próprios territórios, e com a produção em série e em grande escala, a economia desses lugares se ampliou e se dinamizou ao ponto dos estados nacionais europeus pioneiros na implementação desse sistema eonômico/financeiro, a consolidarem o seu desenvolvimento político e econômico e assim, passaram a exportar um modelo civilizatório. A Inglaterra, de onde essa revolução industrial se institucionalizou com mais força, tomou a dianteira como principal potência mundial do século XIX, e sua elite intelectual defendia que o homem comum, idependentemente de sua nacionalidade, deveria estar ligado a uma lógica de trabalho pago assalariado para poder comprar os ítens que bem necessitasse para sí e para a sua família, ou seja, sua cidadania estaria essencialmente vinculada ao consumo dos bens produzidos pela indústria. E essas unidades de produção fabris poderiam assim receber os gêneros produzidos no campo e as matérias-primas para beneficiá-los e transformá-los em novos produtos prontos para o consumo com uma demanda potencial cada vez maior, inclusive ao se criar novos mercados em outros países, que comprariam a produção excedente por meio de importações, e assim, o dinheiro advindo desse sistema permitiu um desenvolvimento tecnológico e científico sem precedentes na história e as instituíções jurídicas e governamentais desses países, em paralelo ajudaram a consolidar esse modelo.

Então o capitalismo ajudou a extinguir a escravidão, certo?

Por um lado, houve um intenso movimento nos países do continente americano incentivados pelos antigos colonizadores europeus para a substituíção da mão-de-obra escrava para o trabalho assalariado, o que revelou-se um sucesso nos anos subsequentes. Porém, o que fazer com a horda de pobres camponeses que não precisavam mais se submeter aos seus antigos feitores? Daí o discurso racismo científico entra na história, já que nesses países americanos o trabalhor escravo camponês tinha a pele negra e a sua origem era africana. Enquanto na Europa, os pobres camponeses, que não eram negros e sim europeus de cor branca, eram absorvidos como mão-de-obra para a indústria. Já por essas bandas, onde negros, brancos e índios dividiam no mesmo espaço geográfico, foi criada uma solução pólítica e institucional para que a ordem vigente fosse mantida, ou seja, para que industrialização fosse implementada nesses novos espaços determinou-se que as diferentes "raças" fossem classificadas pelo estado de modo a garantir que as elites econômicas das sociedades locais mantivessem o seu poder, diga-se de passagem filhos e herdeiros dos colonizadores europeus, de modo a provar 'científiamente' que estes eram mais capazes e inteligentes de modo a garantir que esse modo de civilização se mantivesse a fim de desenvolver a nação como um todo, e o papel do estado, também controlado majoritariamente pelas elites econômicas e intelectuais de cidadãos de cor branca, serviria para uma vez identificado os diferentes grupos raciais, desenvolver os mecanismos para educar, corrigir e controlar as populações desses diferentes grupos a voltarem-se para um progresso social igualitário e homogeneo da população. Que discurso bonito, não é? Isso funcionou muito bem nos EUA do início do século XX, onde o desenvolvimento indústrial controlado pela elite branca permitiu receber a mão-de-obra de qualquer outro grupo racial que fosse, já que o estado faria esse papel de corrigir a diferença existente entre as então 'raças'. Lá também houve escravidão no seu período de colonização, e a população de origem afro-americana representava nessa época o maior desses grupos, o que motivou a serem criados espaços e serviços públicos destinados exclusivamente a essa fatia da população, separados dos brancos.

Mas como era possível classificar esses grupos raciais se naquela época não tinha exame de DNA para comprovar a sua cor?

Simples, nos EUA e nos países europeus a sua linhagem era determinada pela investigação de sua árvore genealógica, ou seja, para ser classificado como 'negro' bastasse que algum antepassado também o fosse, mesmo que muito distante, como um bisavô ou um tataravô que fosse africano e escravo, o que foi chamado de política de 'uma gota de sangue' e que dá nome ao livro citado. Algumas décadas depois, esse critério foi utilizado pela Alemanha Nazista para segregar os judeus dos ditos 'arianos' superiores como justificativa ao Holocausto.

O lado B dessa história, é que com a implementação dessa racialização da espécie humana, em paralelo com a necessidade de ocupação de novos espaços devido ao crescente desenvolvimento econômico das nações industrializadas para garantir novas fontes de matéria-prima e de riquezas naturais para financiar a produção industrial, promoveu-se uma corrida desenfreada para ocupar esses espaços, e assim houve um novo movimento de colonização territorial. E como não eram espaços vazios, haviam populações que viviam de modo tradicional (como vemos aqui por exemplo nas reservas indígenas hoje), usaram as teorias racistas para subjulgaram essas pessoas como culturalente inaptas para que pudessem simplesmente invadir e roubar o seu espaço e, como nesses lugares não havia um estado ou instituíções que os apartasse até então, essas pessoas eram sumariamente eliminadas ou eram forçadas a mudarem completamente o seu modo de vida, sua cultura e seus costumes com uma arma de fogo apontadas para sí, sob a justifiativa de estar promovendo a sua 'civilização'; equivalentes a animais selvagens que devem ser domados e adestrados ao gosto do dominador. Os maiores exemplos disso foram a 'corrida para o Oeste' nos EUA durante o séc. XIX, que dizimaram mais de 90% da população de origem indígena local, e o regime de Apartheid na África do Sul, que durou mais de 40 anos e terminou apenas em 1990, com a segregação geográfica e social entre os grupos de negros e brancos como doutrina oficial de estado, onde a maioria da população negra daquele país fora confinada em bantusões e guetos (unidades territoriais fechadas destinadas a esse segmento da população), largadas à sua propria sorte, a pobreza, a miséria absoluta e a fome; enquanto a elite minoritária branca ocupava a maior parte dos territórios com espaços produtivos e de fontes de recursos naturais para garantir o seu modo de vida baseado nos padrões da sociedade moderna contemporânea.

E por que aqui essa política de racialização da população brasileira não pegou?

Segundo o professor Magnoli, nesse periodo já havia uma grande miscigenação e as tentativas de 'branqueamento' de nossa população com o amplo incentivo do estado por meio da imigração de mão-de-obra excedente de origem européia e branca para fins de colonização, se mostraram inócuas ao passo que as políticas segregacionistas esbarravam na dificuldade de um enquadramento em uma única raça a nossa então elite local, já que era comum que um negro escravo cativo, por exemplo, adotasse o nome da família do seu dono, mesmo depois de liberto ou alforriado, bem como o de seus descendentes. Além disso, os filhos ditos 'bastardos' do colonizador, mestiços por definição, também eram incorporados à família do mesmo. Lembremos que o maior escritor da história da literatura brasileira, e que viveu justamente nessa época, Machado de Assis (vide foto), era mulato! Ainda assim, os defensores da idéia da classificação por raças e da promoção de um movimento de eugenização de nossa população esbarraram nas ideários dos médicos sanitaristas que viveram nesse período, tais como Haddock Lobo e Oswaldo Cruz, que fizeram um papel 'revolucionário' ao defenderem a tese e provarem que não era um determinado segmento dito 'racial' que era responsável por transmitir as moléstias que aflingiam a população, e sim os mosquitos!!! Ora, o que parece hoje óbvio para a gente, naquela época era uma descoberta extraordinária, já que acreditavam os eugenistas que por serem impuros, os mestiços, pardos, caboclos e mamelucos estariam aptos a desenvolverem moléstias por incorporarem defeitos genéticos provenientes dessas misturas de raças e seriam perigosos, pois eram vetores potenciais à contaminarem todo o restante da população.

Se estamos aqui hoje, em pleno século XXI, a re-discutir o passado, será que hoje essa política de raças ainda pega?

Segundo o professor Magnoli, e eu também compartilho da mesma opinião, as mesmas bases que no passado criaram um discurso ideológico com embasamento científico, com o objetivo de organizar os povos e agrupamentos humanos em raças em nome de um pretenso desenvolvimento social, hoje se promove o ideário do multiculturalismo, ou seja, já que 'raça' caiu em desuso hoje e é um termo politicamente incorreto, classifiquemos a população em grupos étnicos e culturais, ou seja, vamos dar um rótulo a aquele baiano que gosta de acarajé e ouve axé; ou aquele gaúcho que veste bombacha e toma chimarrão; ou para aquele carioca da gema, malandro por natureza, que de dia vive na praia e de noite cai na boemia; ou o paulistano estressado e viciado em trabalho, dos gays e lésbicas, dos evangélicos e por aí vai. Digamos que nosso governo resolva identificar e classificar todos os brasileiros de modo a enquadrá-los nesses grupos como políticas de ação afirmativa com a finalidade de garantir a todos esse grupos determinadas 'cotas' voltadas ao acesso aos bens e serviços de utilidade pública, tais como hospitais, escolas, universidade, etc.; nos moldes das polêmicas políticas de cotas existentes para o ingresso de pretos e pardos no ensino superior público. O discurso objetivo já viria pronto como citei alguns parágrafos antes, que é o de garantir o bem-estar a todos, com as partiularidades que cada grupo demanda e a correção das devidas distorções e injustiças históricas. Porém pense comigo, isso daria certo? Será que amanhã ao ver seu filho perder uma vaga na universidade para um 'cotista' de desempenho inferior no vestibular como nos exemplos que citei seria moralmente justo? E se fosse o contrário e seu filho fosse o beneficiado, será que não geraria no mínimo inveja por parte dos grupos do outro excluído pela cota? E se eu, paulistano me casasse com uma mineira ou uma baiana, o meu filho entraria em qual classe ou cota??? O grande problema de quem defende essa tese, é que ao dividirmos em grupos as pessoas, engessamos e desconsideramos a miscigenação, já que se parte do pressuposto que uma vez pertenente a um grupo, a pessoa é excluído de outros, exatamente como era antes...

Pois é, e para deixar isso mais claro vou parafrasear o grande libertário e defensor dos direitos civis nos EUA, na década de 1960, Martin Luther King Jr. (foto) que questionava:

"Não somos o que deveriamos ser, não somos o que desejamos ser, não somos o que iriamos ser, mas graças a Deus não somos o que eramos."

Precisamos voltar então a ser o que era antes pra que a humanidade tenha um futuro melhor? Ou como ele mesmo defendia a tese que somos apenas seres humanos perante o Criador, e que raça é apenas uma invenção do homem para querer diferenciar a sua ignorância, e jamais na história os grupos humanos separados se tornaram iguais, apenas continuariam desiguais. Algumas décadas depois, o primeiro presidente de origem afro-americana, Barak Obama, tomou posse como mandatário da Casa Branca, com uma política de defesa ampla dos direitos humanos para o conjunto total de cidadãos norte-americanos.

E eu, como paulistano, aprecio a beleza de todas as mulheres brasileiras, idependentemente de origem, principalmente pelas suas partiularidades regionais e culturais, ainda bem!

Saiba mais a respeito em outros textos deste blog aqui, aqui e aqui.

Livros:

COUTO, Mia - Cada homem é uma raça; ed. Nova Fronteira, 1998.

MAGNOLI, Demétrio - Uma gota de sangue: História do pensamento racial; ed. Contexto, 2009.

SERRANO, Carlos & WALDMAN, Maurício - Memória D´África: A temática africana em sala de aula; ed. Cortez, 2008.

Filmes:

Hurricane: O Furacão - EUA/1999; Dir. Norman Jewison; com Denzel Washington.



Os Deuses devem estar loucos - África do Sul/Botsuana, 1980. Dir: Jamie Uys




Memórias Póstumas - Brasil/2001; Dir. André Klotzel; com Reginaldo Faria e Marcos Caruso.



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Mister Ale

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